Posted by : Francisco Souza
quinta-feira, 24 de agosto de 2017
ÊXODO
A Aliança e o Povo de Deus
2. O POVO DE ISRAEL E MOISÉS
Nesse clima de perseguição, nasce um menino da Tribo de Levi
que ficou escondido enquanto pôde e até quando o colocaram num cesto calafetado
e o deixaram como que à deriva no Nilo, bem no local onde a filha do Faraó se
banhava. Encontrando-o, adotou-o e o entregou, "sem saber", para a
própria mãe o amamentar e o devolver quando desmamasse (Ex 1,1-10). Recebe o
nome de Moisés (= salvo das águas) e foi criado na corte faraônica após
desmamado, fato comprovado pela tradição israelita (Ex 11,3 / At 7,21), mas
junto com o leite materno a mãe o "amamentou" com a sua origem,
história e nacionalidade, e, principalmente, com a fé no Deus de Abraão, o Deus
da Promessa e da Aliança:
"Pela fé Moisés, logo ao nascer, foi escondido por seus
pais durante três meses, porque viram que o menino era formoso; e não temeram o
decreto do rei" (Hb 11,23)
Moisés, da "Tribo de Levi", muito embora mal vista
pelo pai Jacó, com a destituição da
primogenitura (Gn 49,5-7), é quem vai
comandar a libertação de Israel das garras dos egípcios, conduzi-los até a
Terra Prometida e completar assim a Promessa feita a Abraão (Gn 12,7; 13,15;
15,18; 17,8). Outra tradição israelita viu esse tempo de Moisés com mais
profundidade que a narrativa em tela, oferecendo um pouco mais de detalhes,
fruto de outra fonte:
"Enquanto se aproximava o tempo da promessa que Deus
tinha feito a Abraão, o povo crescia e se multiplicava no Egito; até que se
levantou ali outro rei, que não tinha conhecido José. Usando esse de astúcia
contra a nossa raça, maltratou a nossos pais, ao ponto de fazê-los enjeitar
seus filhos, para que não vivessem. Nesse tempo nasceu Moisés, e era mui
formoso, e foi criado três meses em casa de seu pai. Sendo ele enjeitado, a
filha de Faraó o recolheu e o criou como seu próprio filho. Assim Moisés foi
instruído em toda a sabedoria dos egípcios, e era poderoso em palavras e
obras" (At 7,17-22).
Deus não se sujeita às convenções dos homens, mesmo se por
vezes elas se integrem em seus desígnios, e fará sempre o que for preciso para
atingi-los, tal como dirá a Moisés: "...terei misericórdia de quem eu
tiver misericórdia, e me compadecerei de quem me compadecer" (Ex 33,19), e
o escolhe. Moisés sacrifica todo o seu conforto na corte faraônica e se esforça
para se impor como líder israelita:
"Pela fé Moisés, sendo já homem, recusou ser chamado
filho da filha de Faraó, escolhendo antes ser maltratado com o povo de Deus do
que ter por algum tempo o gozo do pecado, tendo por maiores riquezas o opróbrio
de Cristo do que os tesouros do Egito; porque tinha em vista a recompensa. Pela
fé deixou o Egito, não temendo a ira do rei; porque ficou firme, como quem vê
aquele que é invisível (Hb 11,24-27).
A formação dele na corte faraônica facultou-lhe um
conhecimento à altura de sua missão bem como a familiaridade com os inimigos de
seu povo, propiciando-lhe a visão necessária para a libertação dele, para a
satisfação e cumprimento da Aliança de Abraão. Os homens sempre se opondo, por
causa do pecado, aos Planos de Deus: recusaram a liderança de Moisés,
logicamente por não se encaixar na primogenitura dada por Jacó a outra tribo
que não a de Levi. Por isso não foi aceito como líder pelos israelitas, apesar
de sua demonstração de lealdade, arriscando a sua sorte por causa de um irmão
de raça que sofria nas mãos do capataz opressor. Essa mesma prova foi-lhes dada
também por ter abandonado a sua posição de príncipe, adotado que foi pela filha
do Faraó, possível candidato à sucessão do trono. Envolve-se tanto que, tendo
morto um capataz egípcio, acaba por fugir para a Terra de Madiã (Ex 2,11-15),
junto de sua parentela (Gn 25,2), perseguido pelo Faraó que resolveu matá-lo.:
"Assim Moisés foi instruído em toda a sabedoria dos
egípcios, e era poderoso em palavras e obras. Ora, quando ele completou
quarenta anos, veio-lhe ao coração visitar seus irmãos, os filhos de Israel. E
vendo um deles sofrer injustamente, defendeu-o, e vingou o oprimido, matando o egípcio. Cuidava que
seus irmãos entenderiam que por mão dele Deus lhes havia de dar a liberdade;
mas eles não entenderam. No dia seguinte apareceu-lhes quando brigavam, e quis
levá-los à paz, dizendo: 'Homens, sois irmãos; por que vos maltratais um ao
outro?' Mas o que fazia injustiça ao seu próximo o repeliu, dizendo: 'Quem te
constituiu senhor e juiz sobre nós? Acaso queres tu matar-me, como ontem
mataste o egípcio?' A esta palavra fugiu Moisés, e tornou-se peregrino na terra
de Madiã, onde gerou dois filhos" (At 7,22-29).
Ai, junto a um poço encontra, tal como aconteceu com Isaac e
Jacó, as filhas de um sacerdote, defendendo-as e dando de beber ao rebanho,
pelo que é acolhido e futuramente se casa com uma delas, que lhe deu um filho
Gerson (Ex 16,22) e outro Eliezer (Ex 18,4). Moisés, em virtude da sua opção,
também passa pelas mesmas vicissitudes por que passaram os Patriarcas, por
aquele amadurecer que lhe vem pelo sofrimento, até que Deus se lembre de sua
Promessa e da Aliança:
"Decorrido muito tempo, morreu o rei do Egito; e os
filhos de Israel gemiam debaixo da servidão, clamaram, e subiu a Deus o seu
clamor por causa da servidão. Então Deus, ouvindo-lhes os gemidos, lembrou-se
da sua Aliança com Abraão, com Isaac e com Jacó. E viu Deus os filhos de
Israel, e Deus os conheceu" (Ex 2,23-25).
Moisés apascentava o rebanho de seu sogro, atingindo o Monte
Sinai (também conhecido por Monte
Horeb) percebe a "sarça que ardia em
chamas, mas não se consumia", mantendo-se com o seu verdor apesar da
voracidade do fogo. Aproxima-se para observar melhor o fenômeno (Ex 3,2-3),
quando então recebe o chamado de Deus para a missão de libertar o Povo de Deus:
"E vendo o Senhor que ele se virara para ver, chamou-o
do meio da sarça, e disse: Moisés, Moisés! Respondeu ele: Eis-me aqui.
Prosseguiu Deus: Não te chegues para cá; tira os sapatos dos pés; porque o
lugar em que tu estás é terra santa. Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o
Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de Jacó. E Moisés escondeu o rosto,
porque temeu olhar para Deus. Então disse o Senhor: Com efeito tenho visto a
aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa
dos seus opressores, porque conheço os seus sofrimentos; e desci para o livrar da
mão dos egípcios, e para o fazer subir daquela terra para uma terra boa e
espaçosa, para uma terra que mana leite e mel... E agora, eis que o clamor dos
filhos de Israel é vindo a mim; e também tenho visto a opressão com que os
egípcios os oprimem. Agora, pois, vem e eu te enviarei a Faraó, para que tires
do Egito o meu povo, os filhos de Israel" (Ex 3,4-10).
Mas, tal como acontece geralmente com o "eleito",
a primeira reação de Moisés foi o temor de sua missão junto de Deus. Assim é.
Já era perseguido pela idéia de libertar o seu povo e agora Deus aparece e a
determina. Assusta-se mais ainda pelo compromisso com Deus, incompreensível as
mais das vezes ao Homem, e aparece aquele temor em face da missão específica,
oriundo do sentimento de impotência pertinente à dimensão necessária ao seu
cumprimento. Ao perceber a envergadura da Obra Divina a que é convocado, o
eleito treme e teme. Há uma enorme provação, numa difícil e dura fase da vida,
um período de dificuldades em que sente tudo desmoronar dentro e em torno de
si, restando-lhe apenas Deus pela fé, rejeitado que fora pelos seus irmãos de
raça e em fuga por ter "traído" a corte do Faraó. É como um náufrago,
sozinho em alto mar e em plena escuridão noturna, noite tão negra que nada se
percebe a não ser um tênue luz de esperança a lhe apontar uma única e só
direção: o chamado de Deus. É o ponto culminante e crucial da fé. Só lhe resta
esta fé num lance de consciência a lhe manter viva a esperança em um ideal há
muito alimentado e recusado. Começa então sua caminhada no sentido de Deus e
então se equilibra, se salva e se liberta de tudo. Só quem é livre pode
desempenhar uma missão que nasce na intimidade de Deus. Só quem é livre pode
viver em comunhão e unidade com Deus. Deus só entra num coração livre e vazio
de tudo, estabelecendo com o seu eleito um diálogo íntimo em que se dá a
conhecer por inteiro, pelo que até informa seu próprio nome que o distingue e
se dá a conhecer:
" Então Moisés disse a Deus: Quem sou eu, para que vá a
Faraó e tire do Egito os filhos de Israel? Respondeu-lhe Deus: Certamente eu
estarei contigo; e isto te será por sinal de que eu te enviei:
Quando houveres
tirado do Egito o meu povo, servireis a Deus neste monte. Então disse Moisés a
Deus: Eis que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de
vossos pais me enviou a vós; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? Que lhes
direi? Respondeu Deus a Moisés: EU SOU AQUELE QUE SOU. Disse mais: Assim dirás
aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós. E Deus disse mais a Moisés: Assim
dirás aos filhos de Israel: O Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão,
o Deus de Isaac, e o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é o meu nome
eternamente, e este é o meu memorial de geração em geração" (Ex 3,11-15).
"Isto te será por sinal de que eu te enviei: Quando
houveres tirado do Egito o meu povo, servireis a Deus neste monte", foi o
sinal dado por Deus a se realizar no futuro, aceito absurdamente por Moisés, a
não ser que se explique por um ato de profunda fé, cuja simples afirmação de
Deus, "certamente eu estarei contigo", lhe foi suficiente. A mesma fé
de Abraão, Isaac e Jacó prossegue seu caminho na realização da Aliança. Por
outro lado, e da mesma forma, o "...mais numeroso e mais forte do que
nós" (Ex 1,9), tornou-se temido pelo Faraó não apenas em virtude do número
de pessoas, mas sobretudo do modo particular, especial e peculiar da fé, da
vida em comum e da unidade de seus membros, no que muito se distinguia.
Realmente. É um povo já organizado, consciente de sua unidade, tinha até mesmo
chefes distintos daqueles do Egito, a quem obedecia, só lhe faltando a
independência oficial para se desmembrar:
" Vai, ajunta os anciãos de Israel e dize-lhes: O
Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó,
apareceu-me, dizendo: certamente vos tenho visitado e visto o que vos tem sido
feito no Egito; e tenho dito: Far-vos-ei subir da aflição(...) para uma terra
que mana leite e mel. E ouvirão a tua voz..." (Ex 3,16-18a).
Os Filhos de Jacó tinham uma fé comum, uma única fé, a fé
dos pais, criam e esperavam num único e mesmo Senhor, "o Deus de Abraão,
de Isaac e de Jacó", a quem cultuavam e eram fiéis, fruto de uma tradição
oral de quatrocentos anos, mantida viva e fiel (Gn 15,13). Os hebreus
mantiveram oralmente a fé dos antepassados, vivendo em terra estranha e alheia,
peregrinos. Não sendo assim não teria sentido dizer-lhes, nem ser-se-ia
compreendido, que se tratava d"o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o
Deus de Isaac, o Deus de Jacó":
" E ouvirão a tua voz; e ireis, tu e os anciãos de
Israel, ao rei do Egito, e dir-lhe-eis: O Senhor, o Deus dos hebreus,
encontrou-nos. Agora, pois, deixa-nos ir caminho de três dias para o deserto,
para que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus" (Ex 3,18).
Conheciam a própria história e tinham confiança em seu
futuro, aguardando a própria independência, único fator latente para, liberto,
tornar-se em um povo, o Povo da Aliança de Abraão, herdeiros da Terra
Prometida:
"Então disse o Senhor a Abrão: Sabe com certeza que a
tua descendência será peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão,
e será afligida por quatrocentos anos; sabe também que eu julgarei a nação a
qual ela tem de servir; e depois sairá com muitos bens" (Gn 15,13-14).
Juntamente com a Promessa e a Aliança, isso estava mais que
enraizado em sua própria índole e consciência, e integrou-se à sua cultura pela
esperança que depositavam em Deus, causa de sua docilidade e paciência em toda
a servidão que sofriam. Acreditavam que libertá-los-ia ("iria fazê-los subir
da aflição do Egito (...) para uma terra que mana leite e mel" - Ex 3,17),
motivo porque apesar de perseguidos e oprimidos sentiam-se totalmente livres,
vivendo "em figura" a "gloriosa liberdade dos Filhos de
Deus" (Rm 8,21). Liberdade que se traduz mais no sentido da vinculação do
Homem ao seu Criador que uma expressão do direito de praticar soberanamente
determinados atos. Quando o Homem se vincula a Deus é livre, só se submetendo a
algo enquanto essa submissão não perturba aquela comunhão. Quando essa
liberdade se apresenta, em um dos grupos humanos, homogêneo e organizado
torna-se um virtual perigo a ameaçar a tranqüilidade e a segurança de todos os
outros. Os hebreus no Egito chegaram a ameaçar até a própria segurança
nacional, pela unidade que deles emanava, unidade de fé e unidade de esperança,
já que se temia a sua união com os inimigos (Ex 1,10). Constituíram-se em um
povo que se tornou numeroso, poderoso e livre, eis que não se submetiam aos
cultos dos egípcios nem aos seus costumes pagãos. E, não aceitando o culto
idólatra deles, se tornaram incômodos e os constrangiam, cada vez mais se
separavam e já se distinguiam em dois povos distintos. Quando a fé ou o culto
não é comum não pode haver unidade histórica, nem nacional, e a conseqüência é
o antagonismo mútuo, donde a perseguição ensejada. Mais do que a opressão
física e psicológica a que os submetiam, sofriam outra
os israelitas, bem
caracterizada no pedido a ser feito ao faraó:
"Agora, pois, deixa-nos ir caminho de três dias para o
deserto, para que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus" (Ex 3,18).
É que não podiam oferecer seus sacrifícios, pois as vítimas
que ofereciam a Deus eram deuses para os egípcios, o que lhes era
"abominável", ofensivo e ultrajante, pois que adoravam o boi, o carneiro
e outros animais, imolados pelos israelitas:
" Então chamou Faraó a Moisés e a Aarão, e disse: Ide,
e oferecei sacrifícios ao vosso Deus nesta terra. Respondeu Moisés: Não convém
que assim se faça, porque é abominação aos egípcios o que havemos de oferecer
ao Senhor nosso Deus. Sacrificando nós a abominação dos egípcios perante os
seus olhos, não nos apedrejarão eles? Havemos de ir caminho de três dias ao
deserto, para que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus, como ele nos
ordenar" (Ex 8,21-23).
"Sacrificando nós a abominação dos egípcios perante os
seus olhos, não nos apedrejarão eles?" Ai está o fundamento de todo o
antagonismo entre ambos, da perseguição encetada pelos egípcios e da opressão
sofrida pelos israelitas: a liberdade de culto traduzida na impossibilidade de
oferecimento de sacrifícios, centro gravitacional do culto desde os Patriarcas,
torna-se em uma "a abominação dos egípcios". Ocorria ainda neste
particular até mesmo um natural ciúme do Faraó, tido e havido entre eles como um
deus ou o filho de um deus, bem como a necessidade cultural de se demonstrar
qual dos deuses era mais poderoso, se bem que para o israelita a sua fé já fora
comprovadamente demonstrada por uma esperança alicerçada na paz e na concórdia,
pela própria submissão há tanto tempo sofrendo. Por isso Deus avisa de antemão
a dureza da missão iniciada e da vitória final, deixando claro ser Ele o
principal protagonista da luta a ser travada. Não seria fácil a libertação:
" Eu sei, porém, que o rei do Egito não vos deixará ir,
a não ser por uma forte mão. Portanto estenderei a minha mão, e ferirei o Egito
com todas as minhas maravilhas que farei no meio dele. Depois vos deixará ir. E
eu darei graça a este povo aos olhos dos egípcios; e acontecerá que, quando
sairdes, não saireis vazios. Porque cada mulher pedirá à sua vizinha e à sua
hóspede jóias de prata e jóias de ouro, bem como vestidos, os quais poreis
sobre vossos filhos e sobre vossas filhas; assim despojareis os egípcios"
(Ex 3,19-22).
Este final "...despojareis os egípcios", a
referência ao "exército" de Israel (Ex 6,26; 7,4; 12,36.51), bem como
as "... jóias de prata e jóias de ouro..." que servirão para a
confecção do "Bezerro de Ouro" (Ex 32,2-4), provavelmente do tipo
daqueles "ídolos" que Raquel tirou de seu pai (Gn 31,19.30c.32.34s)
representando "deuses" egípcios, insinuam que se tratava de uma
"guerra santa", pois, não fora assim não seriam "despojos".
Moisés resiste e apesar dos sinais que Deus lhe oferece para fazer e da vara
que lhe dá (Ex 4,17) não adquire coragem (Ex 4,1-10) e é nessa ocasião que
aparece pela primeira vez na Bíblia a função de um "profeta", cujo
significado é por demais deturpado pela deformação que lhe foi impressa de
"ser aquele que é capaz de fazer vaticínios ou previsões dos acontecimentos
futuros", mas não é assim. A língua portuguesa tem uma palavra que pode
auxiliar a compreender etimologicamente o significado de "pro-feta".
É a palavra "pro-nome" que significa "no lugar do nome",
isto é, a palavra que se usa em lugar do nome de uma pessoa: eu, ele, nós etc..
Dentro dessa mesma estrutura "pro-feta" significa "o que fala
('feta' em grego) no lugar de outro". Moisés tinha razão de ficar
temeroso, "pesado de boca e pesado de língua", por ter de convencer
tanto os seus conterrâneos que o haviam "traído" (Ex 11-15 / At
7,23-25) e a corte faraônica donde saíra, e "que traiu". É natural
que assim se sinta, pelo que protesta veementemente e insiste com Deus,
resistindo, e dessa atitude transparece o significado de "profeta"
quando lhe é afirmado que seria Deus para Aarão, em cuja boca poria as palavras
para ele dizer:
"Então disse Moisés ao Senhor: Ah, Senhor! eu não sou
eloqüente, nunca o fui, nem depois que falaste ao teu servo; porque sou pesado
de boca e pesado de língua. (...) Então se acendeu contra Moisés a ira do
Senhor, e disse ele: Não é Aarão, o levita, teu irmão? eu sei que ele pode
falar bem. (...) Tu, pois, lhe falarás, e porás as palavras na sua boca; e eu
serei com a tua boca e com a dele, e vos ensinarei o que haveis de fazer. E ele
falará por ti ao povo; assim e será a tua boca, e tu serás para ele Deus"
(Ex 4,10-16).
Mais claro ainda, em outra narrativa do mesmo fato:
"Então disse o Senhor a Moisés: Eis que te tenho posto
como Deus a Faraó, e Aarão, teu irmão, será o teu profeta. Tu falarás tudo o
que eu te mandar; e Aarão, teu irmão, falará a Faraó, que deixe ir os filhos de
Israel da sua terra" (Ex 7,1-2).
"E ele falará por ti ao povo; assim ele será a tua
boca, e tu serás para ele Deus" (Ex 4,16) e "Aarão, teu irmão, será o
teu profeta. Tu falarás tudo o que eu te mandar; e Aarão, teu irmão, falará a
Faraó (Ex 7,1-2). Basta a leitura dos trechos acima transcritos para se
perceber que "profeta é a boca de Deus", "aquele que fala o que
Deus coloca na sua boca" e não aquele que faz vaticínios ou previsões de
futuro. Como para Deus não há tempo, as palavras que coloca na boca do profeta
são sempre atuais, sempre se realizam, parecendo que fez um vaticínio. Mas, é
profeta porque fala aquilo, e só aquilo, que Deus o manda falar, só por isso.
Daí porque Aarão era o profeta de Moisés, falando o que lhe determinava e
Moisés funcionara como deus para ele, colocando na sua boca o que deveria
dizer. Assim convencido e municiado com a "Vara de Deus" (Ex
4,17.20), Moisés parte de Madiã:
"Tomarás, pois, na tua mão esta vara, com que hás de
fazer os sinais. (...) Disse também o Senhor a Moisés em Madiã: Vai, volta para
o Egito; porque morreram todos os que procuravam tirar-te a vida. Tomou, pois,
Moisés sua mulher e seus filhos, e os fez montar num jumento e tornou à terra
do Egito; e Moisés levou a vara de Deus
na sua mão" (Ex 4,17-20).
"...volta (...) porque morreram todos os que procuravam
tirar... a vida" - esta frase servirá de modelo a outra que será dita
muitos séculos depois, "cumprindo" o que aqui se
"configurava" - José no Egito com o Menino Jesus, fugindo de Herodes
ouvirá a mesma conotação (cfr. Mt 2,20). Mateus usará para mostrar com seu
Evangelho, Jesus como o Moisés prometido (Dt 18,15), já que José,
parafraseando, "tomou, pois, ...sua mulher e seu filho, e os fez montar
num jumento e retornou à terra..." (cfr. Mt 2,21).
Moisés parte. No caminho acontece algo misterioso, daqueles
mistérios da Escritura que dependem de um conhecimento da cultura do tempo e
que se perdeu. É o episódio da circuncisão do filho de Moisés por sua mulher
Séfora, cujo desate é incompreensível (Ex 4,24-26), parecendo que por não ter
sido ainda circuncidado Gérson, seu filho, Deus ameaçou tirar-lhe a vida. Tudo
indica porém que o casal se separa por causa da missão de Moisés e o ritual
praticado é sugerido como um compromisso de fidelidade entre ambos, feito com o
sangue do prepúcio do próprio filho, justificando as palavras então ditas de
que "tu és para mim um esposo de sangue", uma vez que seria
"devolvida pelo sogro com seus dois filhos", Gérson e Eliezer, tempos
depois (Ex 18,2-5). A sua importância ritual para a missão de Moisés ficou
destacada por sua inclusão nesse ponto da narrativa, "no caminho" (Ex
4,24) e antes de iniciá-la, trecho ainda de interpretação difícil, prevalecendo
o critério da circuncisão do filho como indispensável perante Deus e de
garantia, pelo sangue, do reencontro, pela separação temporária que ocorria de
sua família.